"Senti uma decepção já familiar. Ninguém conseguia concordar em nada. Vivíamos numa névoa de percepções fugidias, compartilhadas apenas em parte, e nossos dados sensoriais eram distorcidos por um prisma feito de desejo e crença, que também alterava nossas memórias. Víamos e lembrávamos em nosso próprio favor, e íamos nos autopersuadindo ao longo do caminho. A objetividade implacável, principalmente em relação a nós mesmos, sempre foi uma estratégia social condenada. Somos descendentes daqueles contadores de meias-verdades que, passionais e indignados, no afã de convencer os outros, simultaneamente convenciam a si mesmos. Através das gerações o sucesso fora nos selecionando, e com o sucesso surgiu esse nosso defeito, gravado profundamente nos nossos genes, como sulcos numa trilha de carroças: quando não era o quer queríamos, não conseguíamos concordar sobre o que estava na nossa frente. Crer é ver. É por isso que há divórcios, disputas por território, e guerras, e é por isso que esta estátua de Virgem Maria chora lágrimas ou aquela, de Ganesh, bebe leite. E era por isso que a metafísica e a ciência eram inimigas tão corajosas, invenções tão espantosas, maiores do que a roda, maiores do que a agricultura: artefatos humanos dirigidos contra a textura da natureza humana. A verdade desinteressada. Mas isso não conseguia nos salvar de nós mesmos; os sulcos eram profundos demais. Não podia haver redenção particular na objetividade”.
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Amor para Sempre - Ian McEwan - Editora Rocco.
PS: Oitavo livro do McEwan terminado hj na volta pra casa. Sexto com lugar garantido na prateleira. ;D